Textos ︎
Ainda há motivos para estar aqui no mundo
Texto crítico por Céu Isatto
2025
Por uma pequena fresta um filete de luz se debruça sobre a mesa. Três corpos se espreguiçam no chão: calmos, quietos, sem emitir nenhum som ou movimento. Transe ou sono profundo. Sua respiração, lenta e gradual, é magma — preguiçoso raio de sol secreto — ou ouro derretido. “Não há pressa, não há pressa” um deles parece me dizer. Pela janela entreaberta, com suas cortinas fechadas, passa o vento. Uma das figuras lentamente se levanta e seus cabelos se movem no ar; algo muito importante foi dito, sem palavras, sem som, apenas esse fragmento de imagem que antecede uma nova respiração.
Nossos dedos mindinhos se tocam, elu sussurra algo no seu ouvido, você me olha, eu te olho. Nos conhecemos há muito tempo, mesmo sem memórias claras, mesmo sem as bordas definidas, mesmo sem palavras. Nossos laços — apertados ou frouxos — foram feitos há muito tempo e são refeitos diariamente; tempo, luz, o segredo que vimos no buraco da fechadura, intimidade e descanso.
Quando meu pequeno olho vê um trabalho de Pat Baik primeiramente ele toca a leveza de seus tecidos e, logo após, o peso delicado dos suportes escultóricos de madeira. Inicialmente observo, quiete, o desejo desses materiais, suas formas, seus gestos imóveis e sua linguagem silenciosa. A vontade secreta das coisas inanimadas aqui presentes.
O organza fino, semi transparente, sussurra seu desejo de sair voando, se desprender desse mundo, de seu peso, sua ansiedade. Quer se juntar à família de todas as coisas etéreas: a luz, o vento; se desprender do tempo do mundo terreno, do relógio, do mundo do trabalho.
Meu olhar então se volta à madeira presente em suas obras e ela me confessa a natureza do seu peso: sua vontade de ancoragem e aterramento. Aqui não como um fardo, mas como uma necessidade de fechamento, fixação, de tempo como memória. Sua forma arredondada em cantos, inspirada em antigos móveis coreanos da família de Pat, demonstra seu gesto: segura o tecido não através de metal — aço ou ferro — mas sim cola e linha. Sua tensão é leve e gentil. “Ainda há motivos para estar aqui no mundo. Fica mais um pouco.”
Por fim, minha atenção se move até as imagens que repousam na superfície do seu trabalho; acolhidas pela madeira, pela linha, pela cola e pelos pigmentos gentis. As imagens me apontam o calor na ponta dos seus dedos, o rosto de alguém amado — mesmo que seja o meu próprio rosto —, uma alegria plena ou uma melancolia profunda pousam, com suavidade, nos meus olhos. Na minha boca sinto um gosto, nostálgico, que mora também no fundo mais doce da sua boca. Temos poucas palavras, memórias e imagens em comum, mas aqui elas são o suficiente.
Ao analisar a genealogia das imagens presente no trabalho de Baik, percebo como referência os mangás shoujo dos anos 2000 em diante. Alguns podem vir achar tais referências — vindas de uma mídia de massa voltada a jovens públicos femininos — como algo superficial, de menor seriedade. Eu discordo. Aqui vejo uma postura de sensibilidade a uma estética, por meio da pintura e desenho, que é enraizada no seu afetivo, na sua intimidade, na sua formação como pessoa ao longo de sua infância até sua vida adulta: a maneira como desenha cabelo delicadamente, composições de cenas, as mãos, os olhos. Uma estética que se espelha no tema comum do amor. Não necessariamente no amor da experiência de viver seu primeiro romance, mas sim no amor como essa mediação entre eu e o mundo; entre eu e eu mesma, entre eu e o outro. O amor, aqui, é o atravessar de uma ponte, o pular de um limiar, é o ato de burlar uma borda. Amor como campo de transformação radical. O amor — aqui e sempre — é um espaço de transição.
As três figuras que aparecem em suas obras (cabelo curto, cabelo médio e cabelo longo) não são desconexas, mas sim três partes — facetas, posturas — de seu próprio eu ao longo do tempo. São sua própria imagem que narra a relação com si mesme através do passado, presente e futuro. Sempre dançando numa circularidade lenta — essa órbita vagarosa — onde um se desloca em direção ao outro para assumir seu lugar. Circularidade do tempo, coreografia constante: passado molda presente, presente molda futuro, futuro molda passado e vice-versa.

Todo produto de trabalho é também rastro de quem o faz; o trabalho sensível de Pat, as obras aqui presentes, não são diferentes. Falar do uso de qualquer material por um artista é falar de uma relação. Uma relação entre o artista e os materiais, entre artista e o mundo que o gesta, entre ele e si mesmo. É abrir também para não se abster e ver uma relação entre quem escreve o texto com o artista, com os materiais, com o mundo e essas imagem que são feitas, por meio de palavras, durante esse espaço de mediação. Tudo circula continuamente nessa relação infinita, órbita lenta. Nesse mar com suas correntezas próprias. Mesmo distante, tudo continua girando através eco das nossas coreografias conjuntas já passadas, fermentando, mudando, mantendo resquícios que nos nutrem, nos movem. A circularidade se mantém. Nada é transparente, mas tudo tem uma pequena fresta por onde podemos, de vez em quando e se tivermos atenção, espiar vislumbres.
Quando vejo Baik, não volto meu olhar para elu. Meus ouvidos ouviram a cadência da sua voz e como pronuncia cada palavra, minha língua já sentiu a maneira com a qual cozinha — pequenas porções de várias coisas diminutas, bem temperadas, com receitas aprendidas em família durante sua infância —, minha pele já sentiu a maneira com a qual abraça — como seu corpo acolhe outro corpo amigo — e minha visão já viu os gestos os quais dirige à pessoas amadas; um vislumbre dos suas afeições e medos, cadências, ataques e retiradas. Não volto meu olhar para Pat Baik; volto todos meus sentidos e nossas memórias conjuntas para perceber como opera seu desejo. Sinto a vontade das coisas vivas e das inanimadas que e circulam: No seu trabalho há a dicotomia entre a vontade da liberdade de todas as coisas onde não cabe mais — a vontade de imaginar novas formas de viver (o organza aqui como prenúncio) — e a necessidade de aterramento, de casa, memória e acolhimento (a estabilidade da madeira com suas formas arredondadas). Baik procura um lar que, assim como seus trabalhos, tenha fixação na terra, mas que também acolha o vento.
Não é fácil para alguém que ocupa muitas vezes um não-lugar, uma pessoa coreano-brasileira e trans não-binária, encontrar esse equilíbrio. São necessárias diferentes posturas, trocas de peso, trabalho constante e aprendizado vagaroso para entender essa incessante relação com o mundo que nos cerca. Não há linguagens definidas que possam ser usadas aqui, é tudo novo e nos resta inventar um léxico próprio. As imagens que Baik produz são a encarnação dessa vontade: de criar uma ponte, uma gramática própria que esteja aberta ao mundo. São trabalhos tanto de ficção do mundo — figuras sem fundo definido, com foco apenas nos seus gestos e em pequenos objetos de valor emocional — quanto de auto-ficção. Possibilidades de prenúncio, conectando passado e presente por um elo infinito, de outros futuros por vir. Temos poucas palavras, memórias e imagens em comum; aqui elas são suficientes e, se não forem, criaremos novas.
“Ponta dos Dedos”, Mika Takahashi e Patricia Baik
Texto crítico por Carollina Lauriano
2023
Estabelecendo um diálogo entre as produções de Mika Takahashi e Patricia Baik, a mostra apresenta um conjunto de 21 obras que transitam entre pinturas a óleo e acrílica sobre organza, linho, entre outros suportes, além de uma série de esculturas que lidam com realidades contemporâneas, ao mesmo tempo que apontam caminhos para construção de novos imaginários de futuro.
Aqui, me interessa pensar o título da exposição como índice desses apontamentos. Ponta dos dedos, a princípio, surge como uma ideia de impressão digital; esse padrão único que armazena nossas identidades.
Se observarmos que a mostra reúne duas artistas com ascendência asiática, mais do que buscar proximidades entre as culturas - que embora estejam tão próximas a nós, ainda nos são distantes - quais são as singularidades implicadas em cada uma dessas subjetividades ademais de estereótipos e conceitos pré concebidos de que certos corpos só podem produzir certo tipo de arte. Identidade, para além da afirmação sobre si, também pode (e deve) ser um espaço de exercício de liberdade.
Dessa forma, a exposição se articula como um convite a olhar. E olhar além.
Em suas pinturas, Mika Takahashi elabora processos de memórias e vivências que se desencadeiam na criação de universos cheios de particularidades. Essa encenação entre imagem e narrativa é o elemento disparador do processo criativo de Mika, culminando na criação de ambientes oníricos, que transitam entre o figurativo e a abstração.
As composições pictóricas criadas por Mika evocam, de certa forma, lugares conhecidos, que inicialmente criam um lugar de acolhimento, mas não somente por apresentarem cenas facilmente reconhecíveis e nomináveis. Ao meu ver, a força do trabalho de Mika mora exatamente na incompletude das imagens. Esse estranhamento que vai de encontro com uma noção de paisagem e toda su
Se a percepção de intimidade rodeia os trabalhos de Mika, é no conjunto de obras de Patricia Baik que ela se fundamenta. De frente para a janela-vitrine da galeria, está uma pintura-instalação que apresenta dois corpos partilhando de um momento íntimo, do toque, da confiança, da entrega e da troca. E esses momentos estão presentes em outras cenas compostas por Patricia.
Suas obras suscitam a busca pelo encontro do outro. Pelo afeto. Mesmo quando as figuras se encontram sozinhas, Patrícia consegue estabelecer uma dimensão de presença. Mesmo a pequena borboleta repousada sobre a mesa não nos causa uma sensação de melancolia. A espera que ela possa ir de encontro a outras borboletas, ou que outras venham a seu encontro, ou mesmo que ela permaneça ali, sozinha, as narrativas permeiam um desejo de busca. Desejo de encontro de si em relação ao outro ou a si mesmo.
Assim, observamos que tanto Mika Takahashi, quanto Patricia Baik, estão sempre colocando o espectador diante de si mesmo, a fim de desconstruir e construir novas perspectivas sobre o olhar do outro, sobre si e o mundo ao redor, ampliando as possibilidades de reconstruir novas memórias para um novo futuro.
“Ao Dentro”, Bel Ysoh e Patricia Baik
Texto crítico por Paola Ribeiro
2022
Os Moon Jars de Bel Ysoh não são exatamente redondos, são feitos de argilas diversas e banhados de branco. E em Ao dentro se reúnem pela primeira vez em razão de uma ocasião muito especial, a visita de um novo irmão que tem seu tempo de vida determinado pela exposição.
Um Moon Jar demora para ser erguido, o que é uma característica inerente da cerâmica, se feito muito rápido pode ceder, se feito muito devagar pode quebrar, quando se leva a peça à queima nem sempre ela sairá inteira, a margem de erro sempre espreita e lidar com isso é parte do aprendizado do/a/e ceramista. A construção de um grande objeto demanda uma negociação muito maior, um tempo muito maior.
Esse irmão maior teve um tempo curto, e isso é parte do jogo. Então o que é possível ser aqui e agora? Ele, assim como seus irmãos, cita uma peça tradicional coreana que é feita de duas partes espelhadas de porcelana branca unidas invisivelmente pelo centro formando uma circunferência que lembra a lua cheia, e é daí que vem seu nome: Moon Jar (Jarro Lua) ou 달항아리. Bel Ysoh cita suas origens todas as vezes que faz um Moon Jar, porém mais do que de origem ela fala de um presente possível, imperfeito, e por isso mesmo singular e irrepetível. Essa beleza é incontornável. Cada peça pode ser uma nova história, um novo espelho, mais uma face de Bel.
Pegar nas mãos, olhar de perto, sentir o vento passar pelos cabelos, sentar junto, descansar. Essas ações podem servir de narrativa para a reunião de instantes que Patricia Baik apresenta através da articulação da pintura, do desenho e do objeto. Em um tecido fino cuidadosamente tratado e cortado como um espelho sustentado por fitas do mesmo tecido amarradas a arabescos de madeira foi feita uma pintura onde se pode ver três pessoas debruçadas sobre a mesa. Uma de cabelo longo e escuro, outra de cabelo médio e escuro e uma de cabelo curto loiro. Essas são personagens que já encontramos outras vezes no trabalho de Baik, mas essa é a primeira vez que elas habitam o mesmo espaço e compartilham um momento de intimidade e alta vulnerabilidade, que é o sono. O arabesco e a forma do tecido parecem fazer analogia a uma janela ou a um espelho mágico, em ambos podemos ver através. Ao observar esse instante de cores quentes, que se esvanece no branco do tecido, podemos ser colocados/as/es no lugar de voyeur que prende a respiração para não ser pego contemplando o momento.
Talvez o convite a olhar seja a maior provocação de Baik nesse conjunto, porque o pequeno desenho e a pequena mesa com um igualmente pequeno copo de chá nos obriga a chegar perto para ver melhor. Pode gerar ainda a vontade de pegar com a mão e trazer para perto para sorver o momento e senti-lo no próprio corpo. Afinal o copo de chá não está vazio. Mesa e copo compõe uma oferenda ?. A quem se destina esse altar?
Bel Ysoh e Patricia Baik nos convocam para dentro por meio de uma delicada construção de margens feitas de espaços, pessoas e jarros, que quem sabe não são a mesma coisa em faces e estados diferentes como a água , o gelo e o vapor. Arriscar-se e aceitar esse convite é se inserir nas narrativas que desfrutam tempo e partilhar do prazer que é estar junto.

Texto por Guarido
2022
Cabelos, fios que crescem do escalpo de maneira desordenada e abundante, mesmo após a morte não se degrada como todo o resto do corpo. Refletir sobre o cabelo é pensar no lado infinito do ser, é o que fica dos nossos restos, quando não nos abandona em vida. O stress, as mudanças, as traições se mostram cada vez mais presentes nos fios, ou na perda deles.
Dizem que quando se faz uma mudança muito radical no cabelo é porque houve uma grande ruptura em sua vida. O que traz o pensamento que existe uma força, uma aura que vem do cabelo, um poder indecifrável, algo que não tem e não deve ser tocado.
Pensar na produção de Baik é algo tão intrigante quanto tentar decifrar o porquê um fio cresce de nosso crânio e segue crescendo até morrermos, trazendo tantas nuances durante este processo, como a mudança de cor e textura com o passar dos anos, criando um contexto que parece tão claro, mas ao mesmo tempo é denso em uma profundeza do subconsciente.
Sua narrativa é voltada para o self, para si, para sua personagem que poderia ser eu ou você se mergulhamos nesse universo fictício, onde a artista cria e nos mostra essa aventura que é se descobrir a partir de fases de uma mesma personagem que se desdobra, se dividindo em 3, começando com a cabelo curto, seguindo pelo cabelo médio e finalizando com a cabelo comprido. Sem uma linearidade, essas 3 personagens são uma só, ou seja, a mesma em suas fases e vivências distintas que acabam se encontrando.
Os encontros proporcionados entre o cabelo curto e o comprido ou até mesmo com o médio nos remete a encontros que temos com nós mesmos em etapas diferentes de nossa vida, o crescer é algo audacioso, e são esses os momentos em que Baik registra em suas obras, na vida cedo ou tarde nos reencontramos conosco e são estes os encontros marcados por uma aura etérea que remete ao universo do subconsciente. Onde mora nossas dores, anseios, traumas, decepções e principalmente nossas referências. Nossa ancestralidade que muitas vezes buscamos ativamente ou não, está incrustada em nossos comportamentos. E nossos ancestrais que tanto nos protegem também nos questionam, facilitando e possibilitando nossos encontros com nós mesmos.
A materialidade da obra criada com a leveza da organza trás a mudança, a delicadeza, o sutil, o ar, ao mesmo tempo que faz uma alusão às fases do cabelo, é como se a personagem se aceitasse em seu momento e mudasse apenas a cor ou a textura dos fios. Assim executando mudanças mais leves e tranquilas, voltando-se para si. A madeira une o interesse da instalação tão caro para a artista, e já explorado em sua residência artística feita na School of Visual Arts em Nova Iorque, aqui este suporte é projetado e adicionado como mais um elemento em sua produção, criando desta forma uma camada de profundidade e densidade se contrapondo ao fino tecido que é pintado já pendurado na parede de maneira livre e esvoaçante. Intrigando o olhar do espectador diante de tamanha fluidez e detalhes.
O desejo, a volatilidade, a potência do encontro se mostra muito presente em todas as fases dessas 3 versões, tocar em si mesmo, perdoar o seu eu do passado, recuperando suas origens que muitas vezes nos é negado pela sociedade é um ato de resistência, mas Baik faz isso através de uma leveza e genuinidade presente na descoberta, no detalhe dos fios esvoaçantes, no presente que nos dá quando partilha o sensível de sua produção.
O brinco, uma pequena lembrança, o ponto de partir, a explosão, a palheta de cor que se mantém mesmo com algumas alterações. É o resgate que escurece e clareia conforme a fase da personagem, de acordo com o que o encontro demanda. A beleza da leveza. Não existe drama, mesmo com a narrativa se tornando mais densa em alguns momentos, existe uma uma sensibilidade que só o etéreo oferece. Inspirando-se nos quadrinhos, a artista traz para arte contemporânea o poder de contar uma história e manter o público se questionando, qual é a próxima fase? Qual é o próximo encontro? Cadê o cabelo curto? Ou até mesmo o cabelo médio? E o comprido? Está bem? Todos se encontram em algum momento? Sim? Não?
O futuro não é certo!
Mas cada vez mais a produção de Baik faz as pazes consigo, com todas suas referências, seus antepassados e continua criando, de forma complexa e estratégica novas formas de utilizar-se de elementos, suportes e novas conjunções para dar vida a este universo, ora cheio de névoas, ora tão claro quanto um dia ensolarado do alto verão.
A partir disso Baik continua apresentando atmosferas trançadas com o poder da explosão do encontro, nos trabalhos mais recentes como Nada lhe garante este mundo part 2 (2022), Dorme bem (2022) e Pode dormir (2022), traz uma nova fase de sua produção, onde características típicas com a tela e os tons azuis saem de cena e uma nova palheta de cores mais terrosa toma conta da fina organza, transportando de volta seu caráter instalativo como quem sai de casa mas sempre retorna levando algo para seu lar. A madeira em conjunto da corda se unem criando uma obra ímpar onde a experiência de ver presencialmente ainda faz jus de forma remota, quebrando barreiras e não perdendo suas dimensões.
Em Nada lhe garante este mundo part 2 a personagem encara o abismo, a partir da luz no fim do túnel, encara-se depois de perceber que o futuro é incerto e foi o que todos vivemos coletivamente nos últimos anos. Se antes já não havia garantias, hoje há menos ainda. Crescer em meio a tantos momentos históricos nos atinge de muitos modos, é impossível não se encarar de frente. Talvez do jeito mais desconfortável possível, essa é um pouco da experiência dos vinte e poucos anos onde o acalento que tanto procuramos, na verdade deve vir de nós mesmos.
E esse toque de autocuidado que vemos em Pode dormir e Dorme bem, traz um assunto que hoje é muito discutido de modo até corriqueiro, o cuidado de si que é um ponto bastante explorado tanto na filosofia quanto na psicanálise, pois interliga camadas densas onde mergulha-se no self do sujeito conectando seu consciente com o inconsciente. Sendo esta uma forma de tentar desvendar os porquês movimentos feitos nos encontros promovidos pela artista.
Mas o que a produção de Baik nos trará sempre será uma grande incógnita, qual será os próximos passos dessa personagem que se descobre em frente aos nossos olhos? Essa é uma questão que só o tempo dirá. A única certeza que temos é que irá acontecer, não se sabe qual será o próximo encontro, em que planeta ou dimensão será realizado essas novas trocas, porém elas virão e estaremos atentos e ávidos por mais um capítulo dessa jornada, como quem vira as páginas de um quadrinho aguardando uma nova aventura.

Patricia Baik por Ing Lee
2021
Patricia Baik é uma artista que trabalha com o híbrido. Mesclando e transitando por diferentes técnicas, que vão desde a escrita, desenho, pintura, publicações impressas e instalações, o seu processo é amplo e difuso. Suas obras tecem linhas narrativas sem uma cronologia exata nem concisa, tal como fragmentos de memórias, de histórias contadas nos pequenos detalhes. Isto fica claro em seu processo criativo, onde os títulos dos trabalhos são excertos de escritos da própria artista.
Observa-se que, em suas pinturas, Patricia não se limita somente à tela ou tecido. Elas se expandem e tomam formas que transparecem um pensamento instalativo em suas montagens. Algumas de suas obras (como “Nada lhe garante este mundo” e “Boa noite, a gente se encontra em breve”), possuem tramas que são erguidas por cordas e nós densos, formando linhas que se conectam e entrecruzam; sob a sustentação de mãos francesas, que se tornam suporte não somente da pintura em si, como também funcionam como prateleiras para expor porcelanas e vasos de família, uma escolha afetiva que transmite familiaridade.
Um de seus trabalhos de publicação impressa mais notáveis é “Onde, (por enquanto)”, no qual a artista se propõe a explorar com profundidade temáticas que ganham desdobramentos posteriormente em seus desenhos e pinturas. Patricia intercala experimentalmente a narrativa em português e coreano - sendo este escrito como brincadeiras fonéticas e idiossincrasias que apenas ela mesma é capaz de compreender em sua totalidade -, com desenhos em grafite de sequências gráficas que expressam o intraduzível, como no ato de descascar e entregar uma maçã picada para um familiar como um gesto de pedido de desculpas.
As obras de Baik ressignificam sua experiência enquanto fruto da diáspora, filha de pais imigrantes coreanos, trazendo diversos elementos que a trazem para casa - numa busca incessante de volta ao lar. Permeia a promessa de volta, para um lugar que não pode mais existir em outro período fora desse instante, como omonis (mães coreanas) cotidianamente murmuram aos seus filhos: “돌아오는 길에 사다죠” (“a gente compra no caminho de volta”). Uma contemplação à finitude das coisas, de um corpo em constante movimento e construção, que se perde para se reencontrar.
Uma longa caminhada, sem rumo predeterminado, cujo ponto de partida e de retorno é o seu próprio destino. Patricia Baik atravessa espaços e tempos repletos de memórias afetivas, sob diversos ângulos e dimensões de uma pletora de possibilidades autoficcionais em diferentes tempos, num misto de nostalgia pelo o que se viveu, o que está vivendo e o que ainda será vivido.
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